sexta-feira, agosto 27, 2004

Um outro olhar - I

Olhar para as árvores e não ver a floresta é pecado que todos cometemos mais tarde ou mais cedo. Ou porque o horizonte nos é limitado, ou porque sabemos pouco, ou até porque intencionalmente queremos reduzir um problema a uma expressão que nos traga algum conforto ou nos seja conveniente. São muitos os subtemas relacionados com a educação nacional que têm feito notícia de primeira página nos últimos meses. Começando pelas más notas em disciplinas essenciais, nos exames nacionais do 12º ano, o problema do abandono escolar, a nossa má posição em classificações internacionais, a incapacidade do ministério da educação em colocar os profissionais do seu quadro de pessoal nos seus postos de trabalho, até ouvimos o professor Marcelo referir que somos o país mais atrasado da União Europeia no que concerne o número de livros lidos por ano. É um rosário de desgraças a nossa educação nacional. As velhinhas que atrevidamente atravessam as estradas fora das passadeiras e morrem atropeladas, coitadinhas. Mais coitadinhas ainda as que, avançando corajosamente pelas passadeiras, são atropeladas por condutores que não respeitam o direito dos outros. Falemos ainda nos acidentes de trabalho que vitimam mais que um trabalhador por dia. Os índices de contaminação com SIDA que têm em Portugal a taxa mais alta para os níveis etários mais baixos.
Todas estas situações merecem os ?achares? informados dos nossos ?experts? cuja esperteza aconselha sempre os mesmos diagnósticos de exactidão duvidosa. É uma questão de educação, é uma questão de mentalidade, é uma questão de civismo, é um processo lento que exige forte ponderação e um grupo de trabalho. Que tal fazer um protocolo? Nunca, neste país à cafreal, houve tanto recurso a protocolos. O protocolo lembra-me o ad hoc de tempos idos que viu o seu significado límpido, latino, rigoroso de coisa feita por medida, acabar por significar bandalheira em que qualquer rigor dificilmente se vislumbrava. Já há muito percebemos que, quando não se têm soluções, dizer que o problema é de mentalidades remete para a calendas gregas a sua abordagem. Preferimos que as velhinhas continuem a ser atropeladas, multá-las quando atravessam fora da passadeira seria uma crueldade dessas que nem à avó se faz. É preciso que passem para o outro lado.

Como não se pode tratar de tudo em tão poucas palavras, tentarei abordar a questão dos concursos docentes, sem grande ?eduquês?, que é para que nos entendamos bem. É do conhecimento público a tentativa do governo da coligação PP/PSD de alterar o regime de concursos de professores, digo tentativa porque o resultado está à vista. Pela primeira vez desde o 25 de Abril o desnorte é total. Mesmo que no passado tenha havido problemas no início de anos lectivos isso devia-se à extraordinária expansão do nosso sistema educativo e à falta de professores. Hoje vemos que a incapacidade de gerir toda esta massa humana tem pouco a ver com razões circunstanciais e mais com causas estruturais. O concurso deste ano tem-nos apresentado um folhetim em que o primeiro acto da peça se desdobrou por vários episódios e ainda não terminou.
O primeiro acto deste processo gigantesco é o da ordenação dos candidatos e, sobre isto muito há a dizer, até para se poder perceber a dimensão de incompetência e incapacidade que deveria ser motivo de escândalo nacional. Com a legislação que agora rege os concursos de professores ficou impossibilitada a candidatura para o ano de 2004/05 aos docentes que terminam a sua formação neste ano lectivo de 2003/04. Deste modo estão estabilizados, desde Setembro de 2003, os dados necessários à ordenação dos professores dos quadros e também dos candidatos a professores que tenham acabado o seu curso no ano lectivo passado (2002/03). Podemos dizer então que o Ministério da Educação é efectivamente incapaz de saber quem são os seus profissionais, que tempo de serviço têm, que classificação académica de base têm, para que níveis e grupos de docência estão habilitados, que idade têm, enfim o Ministério da Educação e nomeadamente os seus responsáveis da área de gestão de recursos humanos, sabem muito pouco. Talvez quase nada. De facto, a correcta ordenação dos docentes é independente do momento em que se decide abrir o concurso. Doze meses para organizar uma lista graduada dos profissionais deste Ministério parece demais. Ou não será? Não esqueçamos que no próximo ano iniciar-se-á outro calvário. Bastaria esta realidade para confirmar, sem margens para dúvida, a incompetência estrutural da classe dirigente desta organização. E não esqueçamos que não é uma qualquer organização.
No entanto, apreciar a problemática dos concursos de professores de forma isolada seria, só por si, um erro tão grande como os que constatámos neste processo de concursos de professores. Que dizer então da tão famosa rede escolar? Saberão os portugueses que as oscilações do pessoal docente são de tal forma aberrantes que existem circunstâncias em que um concelho com quinze escolas do 1º ciclo pode viver situações em que um aumento ou diminuição de quinze alunos na população escolar do concelho pode determinar a criação ou extinção de quinze lugares docentes? É aceitável uma tal situação? Claro que não, mas é destas e de outras realidades que se constrói uma dinâmica em que são mais os professores pertencendo a quadros flutuantes que os efectivamente ligados às escolas.
É duma constante brincadeira das cadeiras musicais que se estruturam políticas e regulamentações. Quase tão nómadas como os professores são os ministros pois só dois, nestes últimos trinta anos, cumpriram integralmente os seus mandatos. É das lágrimas de crocodilo vertidas quando sofremos a humilhação de nos vermos pequeninos e incapazes nos índices internacionais que se fazem os arrebatamentos mediáticos dos supostos pensadores da nossa política educativa. Só assim se podem explicar os resquícios de estruturas esclerosadas de outros tempos, só por uma hipocrisia e uma indiferença fundamentais se pode compreender que a educação só seja motivo de notícia pelas piores razões, quando se vê a ponta do icebergue da corrupção ou do compadrio, quando os resultados dos exames nacionais pioram (não podem piorar muito mais, o que é boa notícia), quando o povo das nossas aldeias do norte protesta por lhe fecharem a escola em troca de nada.
Por termos interiorizado que não vale a pena repeti-lo, até nos esquecemos que a ESCOLA não é um supermercado, nem uma qualquer dependência de banco. A escola é tão somente a instituição que nos garante a soberania com muito mais força que quaisquer submarinos, novos ou em segunda mão. Não uso aqui escola nesse sentido abrangente dos conceitos, a escola que nos protege a soberania não é uma qualquer abstracção, é essa que conhecemos, a do nosso bairro, essa a que caem paredes, essa cujos professores mudam todos os anos, essa a que faltam livros, a que faltam telefones, a que falta respeito, essa que queremos que liberte os nossos filhos de séculos de atraso e ignorância, mas à qual tudo se pede e pouco se dá.


M.Rocha Carneiro
4 de Agosto de 2004
(publicado)