segunda-feira, setembro 20, 2004

Um outro olhar - III

Agora até o Dr. Morais Sarmento sabe imenso de educação...
Neste nosso querido país por acaso do nascimento, com o seu milhão de analfabetos confessos e outros incontáveis milhões mais reservados em confissões humilhantes, toda a gente sabe de educação.

E o Princípio de Peter impera, soberano.

Diz-nos António Barreto que "[...] a burocracia ministerial (e seus técnicos e especialistas) e os sindicatos de professores[...] são [...] os verdadeiros responsáveis pela política educativa em Portugal, ajudados evidentemente pela demagogia dos dois grandes partidos.?

Dos professores ninguém fala, mesmo apesar de, hoje como ontem, lhes confiarmos o que de mais precioso há na nossa pátria.

Enfim, sabíamos todos que a classe profissional dos professores estava em baixo, só não sabíamos quanto. Numa profissão, há longos anos minada pela hipocrisia subserviente do agradar a todos, avançamos rapidamente para a concretização do ridículo maoísta de '75, quando um colega meu mais fervoroso insistia que mais não éramos que Operários da Educação na Fábrica da Consciência Revolucionária.

O ridículo de ontem é a triste realidade de hoje. E encham-se as tulhas. Tulhas as escolas e as turmas e os corpos docentes.
Há professores nas escolas no primeiro dia de aulas? Então de que se queixam? Dois terços dos professores sabem na véspera onde vão trabalhar e com quem? Está muito bem, pois já conseguimos na véspera fazer aquilo que os outros países da união fazem com seis meses de antecedência. Alguém se admira que já estejamos no 17º lugar da União Europeia? Importante mesmo é que as ?picaretas falantes? possam dizer que tudo está bem. Políticos nacionais e locais dir-vos-ão que tudo está bem, que nunca esteve melhor.
E as mentiras e os sorrisinhos alarves, mas telegénicos, tantas vezes o dirão que nos contentaremos em que tudo continue na mesma.

Recorrente na minha memória de já algumas décadas é a lembrança dos meus professores do há muitos anos extinto Externato onde estudei. A Senhora Dona Lina, minha professora primária, de exigência ríspida e saudoso rigor, a Senhora Dona Adília que, brilhantíssima Licenciada em Filologia Românica, nunca foi submetida à humilhação de ser chamada de setora, o meu queridíssimo Doutor Abel, homem de falas mansas e amigas, que por ter nome e se chamar Abel, não se chamava setor e começava por nos contar a anedota em que se perguntava por que razão Abel tinha dois filhos e Caim não tinha nenhum. E a resposta era que "Caim wasn't able", ou "Caim wasn't Abel". Anedota de que alguns rimos, anos mais tarde, quando a sua exigência nos fazia a todos ser bem sucedidos nos exames que íamos fazer ao Liceu Nacional na capital do distrito. E eram tempos em que o sucesso não estava garantido por decreto. Era o mesmo Doutor Abel que nos expulsava da sala de aula quando o mínimo detalhe dos trabalhos de casa tinha sido esquecido. "Sai, não estás em condições de assistir à aula?. E era bem fácil chumbar por faltas... Mas com que paciência infinita tratava aqueles que sabendo pouco e fazendo mal se tinham dado ao trabalho de cumprir o seu dever. Poderia enumerá-los a todos. Não eram setores.
Não me lembro de traumas, de punições ou das crueldades, que tanto marcaram outros que, mais cábulas ou corrécios, as invocam durante todos estes anos de vingança ao tomarem as decisões que têm marcado a evolução negativa do clima de trabalho e respeito no nosso sistema educativo.

Universidades da Cerveja, Academias do Bacalhau, Faculdades do Peixinho da Horta...

A tendência massificante do acesso à educação tem levado à crescente proletarização do docente. Um setor ou outro setor, numa escola ou noutra escola, tanto faz. A tempo ou em cima da hora, tanto faz. Na realidade o que interessa é que a creche abra a tempo de contentar os paizinhos. O menino gostou? Está feliz? Está com os amigos? É imperativo que se cumpram os mesmos critérios com que se escolhem os cafés onde vamos. Somos bem tratados? Somos bem servidos? A música agrada-nos? Encontramos os amigos? A conversa é agradável? Muitos somos pais, mas não é obrigatório ser paizinho. Mesmo muitos dos professores, ou melhor dizendo, dos agentes de ensino, ou ainda dos Recursos Humanos da Educação (educação sempre melhor que ensino na conversa dos maoísmos convertidos) colaboram na fantochada em que o futuro do nosso país se tornou. Fujamos de ser setores como o diabo da cruz

Lembremo-nos de Martins Garcia que, no seu último livro, a propósito do "Ministério da Educação, etc.", etc. porque tanto faz, escreveu:

"O Ministério da Educação, etc., tem cultivado tamanha imbecilidade que se converteu num pilriteiro. A imbecilidade, num salto qualitativo, passou a fazer parte da sua natureza. Não foi, não é, o Sr. ministro da educação, etc., que foi, ou é, imbecil. É o cargo que contém, na sua natureza, a imbecilidade. Substituir um ministro disso por outro ministro disso não elimina um traço inerente (neste caso, a imbecilidade). A queda dum governo e a subida de outro constituem retoques de superfície: o ministério da educação continua imbecil. Movimentos aparentemente mais convulsivos (como fazer-se um 25 de Abril para se abrir a porta ao capitalismo mais "selvagem" dos nossos tempos) deixam intacta a essência imbecil de qualquer ministério da educação. Qualquer que seja a reforma (ou até a palhaçada da revolução, vade retro!), "ministério da educação" é semanticamente um semema que inclui por inerência o sema "imbecilidade". Vêem como esta linguagem, a dos semas e sememas (com ideologemas, estilemas, etc.) funciona tão ineficazmente como a tal mania de substituir o nome da coisa para fazer crer que a coisa mudou mantendo-se intacta? Claro que uma linguagem (ou metalinguagem) hermética reserva para alguns poucos (no melhor dos casos) os conhecimentos que, pelo lado de fora, são concedidos a todos, em nome da democracia, mas, pelo lado de dentro, são efectivamente retirados à totalidade, a qual nunca pode ascender ao que somente pertence a iniciados. Isto é a palhaçada americana. Isto é o riso demagogo da Europa que nos abriu a porta." [José Martins Garcia, (Quase) Teóricos e Malditos, Lisboa, Ed. Salamandra, 1999, p 42.]

"Havemos de chorar os mortos se os vivos os não merecerem."


M. Rocha Carneiro
mdarcarneiro@yahoo.com.br

14 de Setembro de 2004

sexta-feira, setembro 10, 2004

Um outro olhar - II

"Um pouco de sinceridade é uma coisa perigosa, muita sinceridade é absolutamente fatal." [Wilde]

Com a informação passa-se o mesmo, pouca informação é uma coisa perigosa, mas muita informação pode ser fatal. Pelo menos pode ser a melhor forma de ocultar o que deveria ser do conhecimento público. Nunca esta ideia foi tão verdade como agora. Entrámos tarde, mas entrámos, na sociedade da informação e, como acontece a todos os que fazem aquisições apressadas, temos dificuldade em digerir esta nossa modernidade. E assim, nesta sociedade a caminho da sociedade da informação, formas sofisticadíssimas do uso das novas tecnologias da informação e comunicação coexistem com hábitos retóricos do pensamento mais obscurantista. Um executivo que recebesse da sua secretária um texto dactilografado pejado de erros não aceitaria que a desculpa fosse que era um problema da máquina de escrever. Já um munícipe que receba das Finanças, pelo sétimo ano consecutivo, um pedido de pagamento de Contribuição Autárquica referente a um prédio urbano a que foi concedida isenção por vários anos, acaba por aceitar a desculpa de que é um erro de computador, um problema informático, em Lisboa, pois assim fica arrumado o utente. O computador permite a criação de um ambiente místico em que a explicação do mundo fica a cargo de novos sacerdotes adoradores de um deus que ultrapassa em muito a compreensão do mais comum dos mortais.
Antigamente, para as calamidades que ultrapassavam a compreensão dos seres humanos, era a vontade de um qualquer deus conveniente que explicava aquilo para que não se tinha explicação, nos outros casos era cada ser humano que tinha que arcar com as suas responsabilidades. Hoje, até nas coisas mais corriqueiras, há um bode expiatório conveniente: é um erro informático. É um deus na máquina.
No entanto, esta é uma realidade bem portuguesa. Enquanto noutros países se é mais exigente em relação aos decisores pelo simples facto de terem sempre ao seu dispor os conhecimentos necessários à construção da decisão, no nosso país é o contrário que acontece. Coitado do homem, o computador falhou.
No início da revolução informática dizia-se ser certo e sabido os computadores regurgitarem o lixo com que tivessem sido alimentados. Não existe erro de computador, existe, hoje como sempre, erro humano.
Atentemos em como, por melhores que sejam os computadores, por melhores que sejam os programadores, não podem compensar graves limitações lógicas na formulação dos objectivos ou no desenhar das organizações. Por outro lado o cidadão não tem grande interesse em saber como foi feito, o que quer é não ter que esperar três meses por aquilo que leva trinta segundos a fazer.
Alguém percebe por que razão, tendo cada cidadão um número único de Bilhete de Identidade, tem também um outro de contribuinte, e outro de carta de condução, e outro da segurança social, e outro, e outro, e outro?
Alguém percebe por que razão junto com o Livrete do carro temos que transportar um Título de Registo de Propriedade? Então não podia ser um só documento, emitido em cinco minutos, como no resto da Europa civilizada? Com a agravante de as repartições que tratam destes assuntos estarem muitas vezes em cidades diferentes?

Outro facto que limita terrivelmente as perspectivas de progresso é, para além da falta de lógica na organização, a falta de imaginação. É assim porque sempre foi assim. Já no tempo da minha avozinha era assim. É assim porque quem não tem pé não pode dar coice e quem manda pode e quem pode manda, quem não tem cão caça com gato e cada macaco no seu galho. Recentemente, de terras de queijo flamengo, de túlipas, do homem que pintava girassóis e campos de trigo, vieram, num barquito, algumas senhoras provocar o ridículo luso. Devem ter pensado que, depois da Casa Pia, dos sucessos do FCP, do Euro 2004 e dos Olímpicos, nos faltaria assunto. Não bastava o extraordinário progresso que fizemos desde a entrada dos novos estados membros da UE, passando de último em quinze para o décimo sétimo lugar em vinte e cinco, havendo mesmo quem se interrogue sobre quantos anos levaremos a ocupar outra vez esse patético primeiro lugar a contar do fim. E assim lá fomos mais uma vez distraídos das nossas preocupações. Ficámos a saber coisas fantásticas. A nossa Armada é capaz de nos defender de qualquer grupo de mulherzinhas de países estrangeiros que nos queiram invadir com propostas subversivas.
Temos Presidente da República. Quase ninguém dá por isso, mas é o próprio que amiúde nos lembra que é Comandante Supremo das Forças Armadas e Garante da Constituição. Pelos vistos é tão pouco evidente que é preciso lembrar os jornalistas e o povo. De qualquer modo podemos ficar tranquilos pois o Senhor Ministro da Defesa já deu o caso por encerrado. Infelizmente o barquito holandês, de dissimuladamente gigantesco calado, provocou ondas e lá começou outra vez o martírio de discutir o que já está discutido em toda a Europa. Só entre nós é que já vem sendo hábito regular. Não parecendo haver mais nada com que entreter o povo vamos lá ao assunto do costume. E aparecem as cabecitas empolgadas por argumentações extremadas, as quais, são por vezes tão opostas, tão afastadas que se assemelham pelo ridículo de uma clamorosa falta de bom senso. Desde as que gritam alto e bom som que a barriga é delas e fazem como lhes der na realíssima, até às que gritam que um espermatozóide a caminho de um ovo já é vida potencial e se chama criança, todas e todos num circo nada propiciador à serena reflexão que assuntos sérios merecem. Entretanto muitas mulheres sofrem e não serão estas fantochadas que nos levarão às soluções de compromisso e bom senso que deveriam caracterizar uma sociedade civilizada.
Parafraseando Wilde, não acabemos por fazer as coisas certas só depois de esgotarmos todas as outras possibilidades.

M. Rocha Carneiro
mdarcarneiro@yahoo.com.br

2 de Setembro de 2004

(publicado)