quinta-feira, setembro 11, 2008

Nós Como Cães

Nós Como Cães


Bastam duas semanas imersos no caldo marítimo primordial, gozando dos prazeres do sol e das finas areias para sermos, no regresso, confrontados com mais, numerosas e modernas inovações do admirável mundo novo para onde alguns nos levam, quais cabras sacrificiais a caminho de um qualquer deserto expiatório.

Vem aí o início do ano lectivo e, segundo os habituais momentos de entretenimento dos nossos noticiários, os pais portugueses vão fazendo contas à vida. Claro que ninguém se digna informar que haveria sistemas de gestão do material escolar que poderiam reduzir a menos de metade os custos das famílias. O “lobby” das alegadas editoras não o permite. Em que outro pais do mundo se remeteriam para o lixo da história todos os materiais produzidos pelo extinto Instituto de Tecnologia Educativa: aí está um inquérito que jamais será feito.

Ouvi ainda a notícia de que dificuldades com a digitalização de fotografias estariam a causar atrasos de quarenta dias na emissão de cartas de condução. A minha, à espera desde Janeiro, obviamente não entrou na estatística.

Parece que o Estado pensa privatizar a gestão das matas nacionais. Parece que têm sido deixadas ao abandono, seguramente por gestores públicos de elevado gabarito e melhor rede de conhecimentos. Não seria mais prático vender as ditas matas? Privatizar, já agora, a orla costeira e todo o domínio público marítimo, que isso de utilizador pagador se funciona para as vias rápidas deveria servir para tudo o resto. E que dizer do Dispositivo Electrónico de Matrícula (DEM)? Esta medida criará uma oportunidade de negócio no valor de 150 milhões de euros (segundo o CM). Serão mais 150 milhões a ser transferidos dos bolsos dos portugueses para parte incerta. Com identificadores em cada automóvel podemos até levar o conceito de utilizador/pagador um pouco mais longe e ter impostos de circulação proporcionais aos quilómetros percorridos.

Um breve exercício de imaginação pode levar-nos a múltiplos possíveis, e se possíveis um dia prováveis, desenvolvimentos destes mecanismos de vigilância electrónica para um eventual mecanismo DEI (Lat. de Deus), Dispositivo Electrónico de Identificação. Se o nosso Ministério da Agricultura (em 2004) chegou a acordo com uma corporação americana denominada Anjo Digital para aplicar “chips” nos nossos melhores amigos, a versão portuguesa para seres humanos teria certamente um consórcio nacional, talvez um Deus Digital SA, a promover o desenvolvimento e injecção de tais produtos no ombro dos passivos portugueses. Do “chip” na matrícula ao “chip” no ombro vai um passo bem pequeno e as vantagens seriam evidentes. Acabaria a dificuldade em identificar condutores infractores, à entrada num hospital não seria necessária nenhuma perda de tempo pois imediatamente, não só o paciente seria identificado, como toda a sua história clínica estaria disponível para consulta pelo pessoal médico, a nível bancário acabariam PINs e assinaturas, todos os plásticos na carteira seriam substituídos com evidentes benefícios ecológicos. Tanta gente com pedras no sapato, condutores com grão na asa, por que não cidadãos com “chips” no ombro?

Do alto, baixo, intermédio ou do nada donde defuntos PIDEs, KGBs, GESTAPOs e quejandos nos miram, que suspiros de inveja, que ais de vergonha pelas incipientes toneladas de ficheiros acumulados por bufarias várias com que quiseram controlar os povos.

Se permitisse a acusação e castigo dos abusadores das casas pouco pias será que valia a pena?


In O Ilhavense, 10/09/2008

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segunda-feira, março 24, 2008

Olhar com olhos de ver

Olhar com olhos de ver A transformação dos professores em meros assalariados, a iníqua praça de jorna em que a contratação de professores para as Actividades de Enriquecimento Curricular se transformou em certos locais do país, a constante desconsideração e violência a que têm sido submetidos, a imposição de medidas que atentam contra a própria natureza da realidade ética do que é ter sido empossado para o exercício de uma das mais nobres das funções públicas, todos estes atentados têm provocado a erosão da principal ferramenta de trabalho de qualquer professor: o respeito dos outros. O nó górdio não é a avaliação, mas sim a divisão de um grupo profissional através do artifício administrativo da criação de categorias. Professor professor e professor titular? Só a cabala pode explicar este contra-senso. Titular de quê? Este crime legislativo será pago por largos anos até que haja a clarividência para perceber o carácter imperativo da necessidade de cooperação entre professores. E será que ninguém compreende a diferença abismal que existe entre ser contratado para a prestação de um serviço e ser empossado para o exercício de uma função? Vale assim tão pouco o futuro de Portugal? Poderemos sobreviver a uma visão mecanicista e incipiente do que é a função educativa? Terá futuro a escola sucursal? Será que queremos mesmo professores assentadores de tijolo às ordens de capatazes circunstanciais? A ministra considera que cem mil não é um número relevante. Estivessem lá os dez milhões de portugueses e ainda assim não seria relevante porque nada é relevante para quem a cultura democrática não tem significado. Para uma doutorada em Sociologia é obra. Bem nos podem dizer que estamos no rumo certo, mas ninguém pode negar a evidência. Contra factos não há argumentos. Os professores são um grupo que, fruto da própria essência da sua profissão, não revela uma grande unidade em circunstâncias normais. Não foi o caso a oito de Março de 2008. Os professores portugueses disseram basta. Nas ruas de Lisboa desfilaram a maioria daqueles que são os depositários vivos do nosso conhecimento colectivo. E o descontentamento chega-nos até vindo dos mais moderados, como é o caso de José Manuel Silva, ex-DREC: “[...] a "questão central" como gosta de dizer Valter Lemos é a forma completamente inábil para não dizer despudoradamente acintosa como os professores têm sido tratados desde o início do mandato desta equipa do ME Jamais esquecerei uma das primeiras reuniões em que participei enquanto DREC, com todo o estado maior do Ministério, em que logo os professores foram o "bombo da festa" e tendo eu chamado a atenção para a necessidade de a Ministra dar uma palavra de incentivo aos colegas a Sr.ª me ter respondido que os "professores queriam era que andassem com eles ao colo", o que me levou a ripostar em tom de brincadeira se ela às vezes não gostava também de um "colinho". A gargalhada geral não disfarçou o tom de crítica severa aos professores, apesar de quase todos à volta da mesa serem, ou terem sido, professores. O que neste momento está em causa não é a obra do ME, é o grito de revolta de uma classe farta de ser ofendida e humilhada e como disse outro dia Marcelo Rebelo de Sousa se há coisas positivas para mostrar, o que não teria sido possível fazer se em vez de se estar contra os professores, se tivessem os professores como aliados. Esta é que é a verdadeira questão central." Se tivermos em consideração o grande número de responsáveis que passaram pelo Ministério da Educação (Eduardo Correia, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio, Manuel Rodrigues de Carvalho, José Emílio da Silva, Vítor Alves, Mário Sottomayor Cardia, Carlos Lloyd Braga, Luís Valente de Oliveira, Luís Veiga da Cunha, Vítor Pereira Crespo, João Fraústo da Silva, José Augusto Seabra, João de Deus Pinheiro, Roberto Carneiro, Diamantino Durão, Couto dos Santos, Manuela Ferreira Leite, Marçal Grilo, Guilherme D’Oliveira Martins, Santos Silva, Domingos Pedrosa de Jesus, David Justino, Maria do Carmo Seabra, Maria de Lurdes Rodrigues) compreendemos que os ministros partem, os professores e as escolas ficam e é sobre os ombros dos professores que fica a responsabilidade de aguentar o sistema quando suas excelências partem para mais verdes e lucrativas pastagens, perdão, paragens. Recordo aqui o meu saudoso amigo José Martins Garcia: “Todo e qualquer ministério da educação é necessariamente imbecil, pelas razões que passo a sintetizar. 1. A educação só diz respeito à transmissão do saber na medida em que a boa comunicação entre os humanos exige a atenção do receptor enquanto o emissor emite; caso contrário, todos acabam por falar ao mesmo tempo, o que constitui má educação. 2. A educação é um assunto que se resolve positivamente quando o comportamento humano obedece a uma exigência interior; por outras palavras: essa exigência é um imperativo categórico, se calhar tão utópico como o de Immanuel Kant em termos de ética; ou se respeita essa exigência, ou se ignora, ou se ofende; em qualquer dos casos, não pode ser gerida por nenhuma instituição. 3. O latim bacillum significa pau, porrete ou cacete; quem não tinha bacillum era imbecillis, ou seja, nem sequer dispunha dum cacete para se defender; o imbecil é o impotente; qualquer ministério da educação é impotente; e é-o por inerência, uma vez que proibiu o cacete nos domínios da educação; até o insuspeito patriota chamado João de Barros (o quinhentista) sabia que, sem "palmatoreadas", ninguém entendia a origem e a evolução da língua portuguesa; as "palmatoreadas" manteriam toda a actualidade no caso de indivíduos desprovidos da exigência interior apresentada no ponto 2. Quando afirmo que a legislação oriunda do Ministério da Educação, etc., se caracteriza pela imbecilidade, quero apenas significar que esse ministério produz imbecilidade tão naturalmente como o pilriteiro dá pilritos.” (José Martins Garcia, (Quase) Teóricos e Malditos, pp. 40-41.) Mais do que um milhão e quinhentos mil anos de experiência acumulada não são relevantes. Milú dixit. Rocha Carneiro 13.03.2008 Publicado em “O Ilhavense” a 20/03/2008