quarta-feira, dezembro 29, 2004

Não é bem assim

Qualquer observador, estranho aos nossos hábitos peculiares, encontraria nesta nossa vida lusitana bastos motivos de interesse e de estudo. A primeira curiosidade da nossa história recente, que infalivelmente provoca um sorriso polido, é o facto de termos sido o único país europeu a exigir de cada cidadão a obtenção de licença para a posse e uso de isqueiro. Cada alemão encontrará aí motivo de ridículo quase redentor do seu obsceno holocausto. Por entre sorrisos incrédulos, de quem pensa que o humor luso ganhou subtilezas que lhes escapam, começará a cimentar-se a ideia de que tanta pequenez é possível. A história do nosso passado recente está repleta de exemplos de grandeza cotejando o mais ridículo. Citava um escritor nosso contemporâneo, um famoso revolucionário que assegurava ter a intenção de levar a cabo a revolução ?contra tudo e contra todos?. Empresa arriscada que estará seguramente na causa de termos tido uma revolução tão linda e simultaneamente tão curta e ineficaz. Muito mais não se poderia esperar de uma intelligentzia que desenvolveu metodologias de argumentação à prova de todos os argumentos. Muitas vezes estruturada na base de silogismos primitivos, a linha de argumentação que tentarei ilustrar é de uma eficácia arrasadora. Funciona mais ou menos assim:

Alguém diz que a liberalização do preço de combustíveis não beneficiou o consumidor e logo o retórico português afirma peremptório:
? Então o que estás a dizer é que as companhias petrolíferas deviam manter um preço baixo e ter prejuízo?
Dificilmente o retórico português ouve e entende o que se lhe diz. Normalmente, para que a discussão continue, sente-se na necessidade de parafrasear o que o seu interlocutor acabou de dizer e isto, muitas vezes, deturpando despudoradamente o que acabou de ser dito. Diz-se que já não se quer comer mais e logo o outro dirá:
? Queres então dizer que a comida não presta?
Alguém diz que não se justifica o ataque à protecção social no nosso país e logo alguém diz:
? O envelhecimento da população vai pôr em causa o equilíbrio financeiro da Segurança Social.
E de nada valerá assinalar que esse é um problema a médio e longo prazo e que seguramente as companhias de seguros não tratarão das reformas de cada cidadão pelos seus lindos olhos.

Seguramente, por muito poderosos que sejam os mecanismos de esperteza enunciados, não podemos esquecer o argumento mais poderoso no arsenal do argumentador lusitano, o ?não é bem assim?. Por muito que tenha procurado ainda não encontrei quem tenha registado a patente deste argumento, poderoso entre os poderosos, no arsenal luso. De facto, ?não é bem assim? é uma arma perigosa. Por um lado, estabelece um princípio de dúvida sobre o que o adversário disse, sem que seja necessário demonstrar qualquer conhecimento do assunto tratado, por outro, não é tão violento como chamar mentiroso ao opositor, o que poderia, por vezes, ter consequências ao nível da integridade física do retórico. Como todos os argumentos úteis, também este se declina em múltiplos matizes. Não é bem assim. Não sei se é bem assim. Não me parece que seja assim. Claro que o questionado, não tendo trazido no bolso qualquer volume da Enciclopédia Luso brasileira, perde um pouco de ímpeto na disputa e deixa aberto o campo para que o vácuo pensador possa marcar alguns pontos.
Outro hábito muito comum é ofender o oponente com a ironia rasca de insinuar que o seu conhecimento é de facto sintoma de ignorância. Nesta categoria podemos incluir os argumentos que evidenciam o profundo desprezo que o ignorante tem pelo conhecimento.
?Olha, lá vem este com filosofias. Deixa-te de filosofias. Tem a mania que é filósofo. Tem a mania que é doutor.?
Liga a ideia anterior com a frase que se usava antigamente: ?Eles é que sabem, eles é que têm os livros?. Ao preço a que estão os livros e face à quantidade que os nossos filhos têm que comprar, é bom que saibam...

Se o ponto de vista expresso for imbuído de alguma dimensão ideal, também é comum ouvir-se a acusação de se ser poeta. Poeta e filósofo são epítetos violentos na argumentação da Lusitânia. Poetas e sonhadores são inócuas categorias de cidadão, relegados para o curioso e o caricato.
Triste mesmo é o expediente das estruturas incompetentes que se traduz pela erosão dos direitos de cada cidadão causada pela incapacidade de estruturas e instituições para assegurar o cabal cumprimento das leis. A recente alteração aos montantes dos subsídios de doença foi justificada com a necessidade de reduzir o recurso a baixas fraudulentas. Curiosamente, quando se argumenta que é injusto penalizar as baixas de média e curta duração, logo o cansado português diz na sua sabedoria da resignação: ?Pois é, paga o justo pelo pecador?.

De uma crueldade subtil e impregnada das marcas da nossa tradição judaico-cristã, ?paga o justo pelo pecador? é outro simples argumento, simplório mas eficaz, usado por todas os grupos e classes sociais. Repare-se que é o argumento ideal para, de forma subliminar, apaziguar os mais revoltados. Os bancos não pagam impostos e as empresas dão todas prejuízo? Então pagam os assalariados, pois então não ?paga o justo pelo pecador??
Muito mais se poderia dizer, e dir-se-á seguramente no futuro, mas por agora basta concluir recordando essa verdade verdadeira que nos ensina que ?ao menino e ao borracho põe-lhe Deus a mão por baixo?. Portugal é um país velho com mais de oitocentos anos de história.

segunda-feira, setembro 20, 2004

Um outro olhar - III

Agora até o Dr. Morais Sarmento sabe imenso de educação...
Neste nosso querido país por acaso do nascimento, com o seu milhão de analfabetos confessos e outros incontáveis milhões mais reservados em confissões humilhantes, toda a gente sabe de educação.

E o Princípio de Peter impera, soberano.

Diz-nos António Barreto que "[...] a burocracia ministerial (e seus técnicos e especialistas) e os sindicatos de professores[...] são [...] os verdadeiros responsáveis pela política educativa em Portugal, ajudados evidentemente pela demagogia dos dois grandes partidos.?

Dos professores ninguém fala, mesmo apesar de, hoje como ontem, lhes confiarmos o que de mais precioso há na nossa pátria.

Enfim, sabíamos todos que a classe profissional dos professores estava em baixo, só não sabíamos quanto. Numa profissão, há longos anos minada pela hipocrisia subserviente do agradar a todos, avançamos rapidamente para a concretização do ridículo maoísta de '75, quando um colega meu mais fervoroso insistia que mais não éramos que Operários da Educação na Fábrica da Consciência Revolucionária.

O ridículo de ontem é a triste realidade de hoje. E encham-se as tulhas. Tulhas as escolas e as turmas e os corpos docentes.
Há professores nas escolas no primeiro dia de aulas? Então de que se queixam? Dois terços dos professores sabem na véspera onde vão trabalhar e com quem? Está muito bem, pois já conseguimos na véspera fazer aquilo que os outros países da união fazem com seis meses de antecedência. Alguém se admira que já estejamos no 17º lugar da União Europeia? Importante mesmo é que as ?picaretas falantes? possam dizer que tudo está bem. Políticos nacionais e locais dir-vos-ão que tudo está bem, que nunca esteve melhor.
E as mentiras e os sorrisinhos alarves, mas telegénicos, tantas vezes o dirão que nos contentaremos em que tudo continue na mesma.

Recorrente na minha memória de já algumas décadas é a lembrança dos meus professores do há muitos anos extinto Externato onde estudei. A Senhora Dona Lina, minha professora primária, de exigência ríspida e saudoso rigor, a Senhora Dona Adília que, brilhantíssima Licenciada em Filologia Românica, nunca foi submetida à humilhação de ser chamada de setora, o meu queridíssimo Doutor Abel, homem de falas mansas e amigas, que por ter nome e se chamar Abel, não se chamava setor e começava por nos contar a anedota em que se perguntava por que razão Abel tinha dois filhos e Caim não tinha nenhum. E a resposta era que "Caim wasn't able", ou "Caim wasn't Abel". Anedota de que alguns rimos, anos mais tarde, quando a sua exigência nos fazia a todos ser bem sucedidos nos exames que íamos fazer ao Liceu Nacional na capital do distrito. E eram tempos em que o sucesso não estava garantido por decreto. Era o mesmo Doutor Abel que nos expulsava da sala de aula quando o mínimo detalhe dos trabalhos de casa tinha sido esquecido. "Sai, não estás em condições de assistir à aula?. E era bem fácil chumbar por faltas... Mas com que paciência infinita tratava aqueles que sabendo pouco e fazendo mal se tinham dado ao trabalho de cumprir o seu dever. Poderia enumerá-los a todos. Não eram setores.
Não me lembro de traumas, de punições ou das crueldades, que tanto marcaram outros que, mais cábulas ou corrécios, as invocam durante todos estes anos de vingança ao tomarem as decisões que têm marcado a evolução negativa do clima de trabalho e respeito no nosso sistema educativo.

Universidades da Cerveja, Academias do Bacalhau, Faculdades do Peixinho da Horta...

A tendência massificante do acesso à educação tem levado à crescente proletarização do docente. Um setor ou outro setor, numa escola ou noutra escola, tanto faz. A tempo ou em cima da hora, tanto faz. Na realidade o que interessa é que a creche abra a tempo de contentar os paizinhos. O menino gostou? Está feliz? Está com os amigos? É imperativo que se cumpram os mesmos critérios com que se escolhem os cafés onde vamos. Somos bem tratados? Somos bem servidos? A música agrada-nos? Encontramos os amigos? A conversa é agradável? Muitos somos pais, mas não é obrigatório ser paizinho. Mesmo muitos dos professores, ou melhor dizendo, dos agentes de ensino, ou ainda dos Recursos Humanos da Educação (educação sempre melhor que ensino na conversa dos maoísmos convertidos) colaboram na fantochada em que o futuro do nosso país se tornou. Fujamos de ser setores como o diabo da cruz

Lembremo-nos de Martins Garcia que, no seu último livro, a propósito do "Ministério da Educação, etc.", etc. porque tanto faz, escreveu:

"O Ministério da Educação, etc., tem cultivado tamanha imbecilidade que se converteu num pilriteiro. A imbecilidade, num salto qualitativo, passou a fazer parte da sua natureza. Não foi, não é, o Sr. ministro da educação, etc., que foi, ou é, imbecil. É o cargo que contém, na sua natureza, a imbecilidade. Substituir um ministro disso por outro ministro disso não elimina um traço inerente (neste caso, a imbecilidade). A queda dum governo e a subida de outro constituem retoques de superfície: o ministério da educação continua imbecil. Movimentos aparentemente mais convulsivos (como fazer-se um 25 de Abril para se abrir a porta ao capitalismo mais "selvagem" dos nossos tempos) deixam intacta a essência imbecil de qualquer ministério da educação. Qualquer que seja a reforma (ou até a palhaçada da revolução, vade retro!), "ministério da educação" é semanticamente um semema que inclui por inerência o sema "imbecilidade". Vêem como esta linguagem, a dos semas e sememas (com ideologemas, estilemas, etc.) funciona tão ineficazmente como a tal mania de substituir o nome da coisa para fazer crer que a coisa mudou mantendo-se intacta? Claro que uma linguagem (ou metalinguagem) hermética reserva para alguns poucos (no melhor dos casos) os conhecimentos que, pelo lado de fora, são concedidos a todos, em nome da democracia, mas, pelo lado de dentro, são efectivamente retirados à totalidade, a qual nunca pode ascender ao que somente pertence a iniciados. Isto é a palhaçada americana. Isto é o riso demagogo da Europa que nos abriu a porta." [José Martins Garcia, (Quase) Teóricos e Malditos, Lisboa, Ed. Salamandra, 1999, p 42.]

"Havemos de chorar os mortos se os vivos os não merecerem."


M. Rocha Carneiro
mdarcarneiro@yahoo.com.br

14 de Setembro de 2004

sexta-feira, setembro 10, 2004

Um outro olhar - II

"Um pouco de sinceridade é uma coisa perigosa, muita sinceridade é absolutamente fatal." [Wilde]

Com a informação passa-se o mesmo, pouca informação é uma coisa perigosa, mas muita informação pode ser fatal. Pelo menos pode ser a melhor forma de ocultar o que deveria ser do conhecimento público. Nunca esta ideia foi tão verdade como agora. Entrámos tarde, mas entrámos, na sociedade da informação e, como acontece a todos os que fazem aquisições apressadas, temos dificuldade em digerir esta nossa modernidade. E assim, nesta sociedade a caminho da sociedade da informação, formas sofisticadíssimas do uso das novas tecnologias da informação e comunicação coexistem com hábitos retóricos do pensamento mais obscurantista. Um executivo que recebesse da sua secretária um texto dactilografado pejado de erros não aceitaria que a desculpa fosse que era um problema da máquina de escrever. Já um munícipe que receba das Finanças, pelo sétimo ano consecutivo, um pedido de pagamento de Contribuição Autárquica referente a um prédio urbano a que foi concedida isenção por vários anos, acaba por aceitar a desculpa de que é um erro de computador, um problema informático, em Lisboa, pois assim fica arrumado o utente. O computador permite a criação de um ambiente místico em que a explicação do mundo fica a cargo de novos sacerdotes adoradores de um deus que ultrapassa em muito a compreensão do mais comum dos mortais.
Antigamente, para as calamidades que ultrapassavam a compreensão dos seres humanos, era a vontade de um qualquer deus conveniente que explicava aquilo para que não se tinha explicação, nos outros casos era cada ser humano que tinha que arcar com as suas responsabilidades. Hoje, até nas coisas mais corriqueiras, há um bode expiatório conveniente: é um erro informático. É um deus na máquina.
No entanto, esta é uma realidade bem portuguesa. Enquanto noutros países se é mais exigente em relação aos decisores pelo simples facto de terem sempre ao seu dispor os conhecimentos necessários à construção da decisão, no nosso país é o contrário que acontece. Coitado do homem, o computador falhou.
No início da revolução informática dizia-se ser certo e sabido os computadores regurgitarem o lixo com que tivessem sido alimentados. Não existe erro de computador, existe, hoje como sempre, erro humano.
Atentemos em como, por melhores que sejam os computadores, por melhores que sejam os programadores, não podem compensar graves limitações lógicas na formulação dos objectivos ou no desenhar das organizações. Por outro lado o cidadão não tem grande interesse em saber como foi feito, o que quer é não ter que esperar três meses por aquilo que leva trinta segundos a fazer.
Alguém percebe por que razão, tendo cada cidadão um número único de Bilhete de Identidade, tem também um outro de contribuinte, e outro de carta de condução, e outro da segurança social, e outro, e outro, e outro?
Alguém percebe por que razão junto com o Livrete do carro temos que transportar um Título de Registo de Propriedade? Então não podia ser um só documento, emitido em cinco minutos, como no resto da Europa civilizada? Com a agravante de as repartições que tratam destes assuntos estarem muitas vezes em cidades diferentes?

Outro facto que limita terrivelmente as perspectivas de progresso é, para além da falta de lógica na organização, a falta de imaginação. É assim porque sempre foi assim. Já no tempo da minha avozinha era assim. É assim porque quem não tem pé não pode dar coice e quem manda pode e quem pode manda, quem não tem cão caça com gato e cada macaco no seu galho. Recentemente, de terras de queijo flamengo, de túlipas, do homem que pintava girassóis e campos de trigo, vieram, num barquito, algumas senhoras provocar o ridículo luso. Devem ter pensado que, depois da Casa Pia, dos sucessos do FCP, do Euro 2004 e dos Olímpicos, nos faltaria assunto. Não bastava o extraordinário progresso que fizemos desde a entrada dos novos estados membros da UE, passando de último em quinze para o décimo sétimo lugar em vinte e cinco, havendo mesmo quem se interrogue sobre quantos anos levaremos a ocupar outra vez esse patético primeiro lugar a contar do fim. E assim lá fomos mais uma vez distraídos das nossas preocupações. Ficámos a saber coisas fantásticas. A nossa Armada é capaz de nos defender de qualquer grupo de mulherzinhas de países estrangeiros que nos queiram invadir com propostas subversivas.
Temos Presidente da República. Quase ninguém dá por isso, mas é o próprio que amiúde nos lembra que é Comandante Supremo das Forças Armadas e Garante da Constituição. Pelos vistos é tão pouco evidente que é preciso lembrar os jornalistas e o povo. De qualquer modo podemos ficar tranquilos pois o Senhor Ministro da Defesa já deu o caso por encerrado. Infelizmente o barquito holandês, de dissimuladamente gigantesco calado, provocou ondas e lá começou outra vez o martírio de discutir o que já está discutido em toda a Europa. Só entre nós é que já vem sendo hábito regular. Não parecendo haver mais nada com que entreter o povo vamos lá ao assunto do costume. E aparecem as cabecitas empolgadas por argumentações extremadas, as quais, são por vezes tão opostas, tão afastadas que se assemelham pelo ridículo de uma clamorosa falta de bom senso. Desde as que gritam alto e bom som que a barriga é delas e fazem como lhes der na realíssima, até às que gritam que um espermatozóide a caminho de um ovo já é vida potencial e se chama criança, todas e todos num circo nada propiciador à serena reflexão que assuntos sérios merecem. Entretanto muitas mulheres sofrem e não serão estas fantochadas que nos levarão às soluções de compromisso e bom senso que deveriam caracterizar uma sociedade civilizada.
Parafraseando Wilde, não acabemos por fazer as coisas certas só depois de esgotarmos todas as outras possibilidades.

M. Rocha Carneiro
mdarcarneiro@yahoo.com.br

2 de Setembro de 2004

(publicado)

sexta-feira, agosto 27, 2004

Um outro olhar - I

Olhar para as árvores e não ver a floresta é pecado que todos cometemos mais tarde ou mais cedo. Ou porque o horizonte nos é limitado, ou porque sabemos pouco, ou até porque intencionalmente queremos reduzir um problema a uma expressão que nos traga algum conforto ou nos seja conveniente. São muitos os subtemas relacionados com a educação nacional que têm feito notícia de primeira página nos últimos meses. Começando pelas más notas em disciplinas essenciais, nos exames nacionais do 12º ano, o problema do abandono escolar, a nossa má posição em classificações internacionais, a incapacidade do ministério da educação em colocar os profissionais do seu quadro de pessoal nos seus postos de trabalho, até ouvimos o professor Marcelo referir que somos o país mais atrasado da União Europeia no que concerne o número de livros lidos por ano. É um rosário de desgraças a nossa educação nacional. As velhinhas que atrevidamente atravessam as estradas fora das passadeiras e morrem atropeladas, coitadinhas. Mais coitadinhas ainda as que, avançando corajosamente pelas passadeiras, são atropeladas por condutores que não respeitam o direito dos outros. Falemos ainda nos acidentes de trabalho que vitimam mais que um trabalhador por dia. Os índices de contaminação com SIDA que têm em Portugal a taxa mais alta para os níveis etários mais baixos.
Todas estas situações merecem os ?achares? informados dos nossos ?experts? cuja esperteza aconselha sempre os mesmos diagnósticos de exactidão duvidosa. É uma questão de educação, é uma questão de mentalidade, é uma questão de civismo, é um processo lento que exige forte ponderação e um grupo de trabalho. Que tal fazer um protocolo? Nunca, neste país à cafreal, houve tanto recurso a protocolos. O protocolo lembra-me o ad hoc de tempos idos que viu o seu significado límpido, latino, rigoroso de coisa feita por medida, acabar por significar bandalheira em que qualquer rigor dificilmente se vislumbrava. Já há muito percebemos que, quando não se têm soluções, dizer que o problema é de mentalidades remete para a calendas gregas a sua abordagem. Preferimos que as velhinhas continuem a ser atropeladas, multá-las quando atravessam fora da passadeira seria uma crueldade dessas que nem à avó se faz. É preciso que passem para o outro lado.

Como não se pode tratar de tudo em tão poucas palavras, tentarei abordar a questão dos concursos docentes, sem grande ?eduquês?, que é para que nos entendamos bem. É do conhecimento público a tentativa do governo da coligação PP/PSD de alterar o regime de concursos de professores, digo tentativa porque o resultado está à vista. Pela primeira vez desde o 25 de Abril o desnorte é total. Mesmo que no passado tenha havido problemas no início de anos lectivos isso devia-se à extraordinária expansão do nosso sistema educativo e à falta de professores. Hoje vemos que a incapacidade de gerir toda esta massa humana tem pouco a ver com razões circunstanciais e mais com causas estruturais. O concurso deste ano tem-nos apresentado um folhetim em que o primeiro acto da peça se desdobrou por vários episódios e ainda não terminou.
O primeiro acto deste processo gigantesco é o da ordenação dos candidatos e, sobre isto muito há a dizer, até para se poder perceber a dimensão de incompetência e incapacidade que deveria ser motivo de escândalo nacional. Com a legislação que agora rege os concursos de professores ficou impossibilitada a candidatura para o ano de 2004/05 aos docentes que terminam a sua formação neste ano lectivo de 2003/04. Deste modo estão estabilizados, desde Setembro de 2003, os dados necessários à ordenação dos professores dos quadros e também dos candidatos a professores que tenham acabado o seu curso no ano lectivo passado (2002/03). Podemos dizer então que o Ministério da Educação é efectivamente incapaz de saber quem são os seus profissionais, que tempo de serviço têm, que classificação académica de base têm, para que níveis e grupos de docência estão habilitados, que idade têm, enfim o Ministério da Educação e nomeadamente os seus responsáveis da área de gestão de recursos humanos, sabem muito pouco. Talvez quase nada. De facto, a correcta ordenação dos docentes é independente do momento em que se decide abrir o concurso. Doze meses para organizar uma lista graduada dos profissionais deste Ministério parece demais. Ou não será? Não esqueçamos que no próximo ano iniciar-se-á outro calvário. Bastaria esta realidade para confirmar, sem margens para dúvida, a incompetência estrutural da classe dirigente desta organização. E não esqueçamos que não é uma qualquer organização.
No entanto, apreciar a problemática dos concursos de professores de forma isolada seria, só por si, um erro tão grande como os que constatámos neste processo de concursos de professores. Que dizer então da tão famosa rede escolar? Saberão os portugueses que as oscilações do pessoal docente são de tal forma aberrantes que existem circunstâncias em que um concelho com quinze escolas do 1º ciclo pode viver situações em que um aumento ou diminuição de quinze alunos na população escolar do concelho pode determinar a criação ou extinção de quinze lugares docentes? É aceitável uma tal situação? Claro que não, mas é destas e de outras realidades que se constrói uma dinâmica em que são mais os professores pertencendo a quadros flutuantes que os efectivamente ligados às escolas.
É duma constante brincadeira das cadeiras musicais que se estruturam políticas e regulamentações. Quase tão nómadas como os professores são os ministros pois só dois, nestes últimos trinta anos, cumpriram integralmente os seus mandatos. É das lágrimas de crocodilo vertidas quando sofremos a humilhação de nos vermos pequeninos e incapazes nos índices internacionais que se fazem os arrebatamentos mediáticos dos supostos pensadores da nossa política educativa. Só assim se podem explicar os resquícios de estruturas esclerosadas de outros tempos, só por uma hipocrisia e uma indiferença fundamentais se pode compreender que a educação só seja motivo de notícia pelas piores razões, quando se vê a ponta do icebergue da corrupção ou do compadrio, quando os resultados dos exames nacionais pioram (não podem piorar muito mais, o que é boa notícia), quando o povo das nossas aldeias do norte protesta por lhe fecharem a escola em troca de nada.
Por termos interiorizado que não vale a pena repeti-lo, até nos esquecemos que a ESCOLA não é um supermercado, nem uma qualquer dependência de banco. A escola é tão somente a instituição que nos garante a soberania com muito mais força que quaisquer submarinos, novos ou em segunda mão. Não uso aqui escola nesse sentido abrangente dos conceitos, a escola que nos protege a soberania não é uma qualquer abstracção, é essa que conhecemos, a do nosso bairro, essa a que caem paredes, essa cujos professores mudam todos os anos, essa a que faltam livros, a que faltam telefones, a que falta respeito, essa que queremos que liberte os nossos filhos de séculos de atraso e ignorância, mas à qual tudo se pede e pouco se dá.


M.Rocha Carneiro
4 de Agosto de 2004
(publicado)