sexta-feira, setembro 10, 2004

Um outro olhar - II

"Um pouco de sinceridade é uma coisa perigosa, muita sinceridade é absolutamente fatal." [Wilde]

Com a informação passa-se o mesmo, pouca informação é uma coisa perigosa, mas muita informação pode ser fatal. Pelo menos pode ser a melhor forma de ocultar o que deveria ser do conhecimento público. Nunca esta ideia foi tão verdade como agora. Entrámos tarde, mas entrámos, na sociedade da informação e, como acontece a todos os que fazem aquisições apressadas, temos dificuldade em digerir esta nossa modernidade. E assim, nesta sociedade a caminho da sociedade da informação, formas sofisticadíssimas do uso das novas tecnologias da informação e comunicação coexistem com hábitos retóricos do pensamento mais obscurantista. Um executivo que recebesse da sua secretária um texto dactilografado pejado de erros não aceitaria que a desculpa fosse que era um problema da máquina de escrever. Já um munícipe que receba das Finanças, pelo sétimo ano consecutivo, um pedido de pagamento de Contribuição Autárquica referente a um prédio urbano a que foi concedida isenção por vários anos, acaba por aceitar a desculpa de que é um erro de computador, um problema informático, em Lisboa, pois assim fica arrumado o utente. O computador permite a criação de um ambiente místico em que a explicação do mundo fica a cargo de novos sacerdotes adoradores de um deus que ultrapassa em muito a compreensão do mais comum dos mortais.
Antigamente, para as calamidades que ultrapassavam a compreensão dos seres humanos, era a vontade de um qualquer deus conveniente que explicava aquilo para que não se tinha explicação, nos outros casos era cada ser humano que tinha que arcar com as suas responsabilidades. Hoje, até nas coisas mais corriqueiras, há um bode expiatório conveniente: é um erro informático. É um deus na máquina.
No entanto, esta é uma realidade bem portuguesa. Enquanto noutros países se é mais exigente em relação aos decisores pelo simples facto de terem sempre ao seu dispor os conhecimentos necessários à construção da decisão, no nosso país é o contrário que acontece. Coitado do homem, o computador falhou.
No início da revolução informática dizia-se ser certo e sabido os computadores regurgitarem o lixo com que tivessem sido alimentados. Não existe erro de computador, existe, hoje como sempre, erro humano.
Atentemos em como, por melhores que sejam os computadores, por melhores que sejam os programadores, não podem compensar graves limitações lógicas na formulação dos objectivos ou no desenhar das organizações. Por outro lado o cidadão não tem grande interesse em saber como foi feito, o que quer é não ter que esperar três meses por aquilo que leva trinta segundos a fazer.
Alguém percebe por que razão, tendo cada cidadão um número único de Bilhete de Identidade, tem também um outro de contribuinte, e outro de carta de condução, e outro da segurança social, e outro, e outro, e outro?
Alguém percebe por que razão junto com o Livrete do carro temos que transportar um Título de Registo de Propriedade? Então não podia ser um só documento, emitido em cinco minutos, como no resto da Europa civilizada? Com a agravante de as repartições que tratam destes assuntos estarem muitas vezes em cidades diferentes?

Outro facto que limita terrivelmente as perspectivas de progresso é, para além da falta de lógica na organização, a falta de imaginação. É assim porque sempre foi assim. Já no tempo da minha avozinha era assim. É assim porque quem não tem pé não pode dar coice e quem manda pode e quem pode manda, quem não tem cão caça com gato e cada macaco no seu galho. Recentemente, de terras de queijo flamengo, de túlipas, do homem que pintava girassóis e campos de trigo, vieram, num barquito, algumas senhoras provocar o ridículo luso. Devem ter pensado que, depois da Casa Pia, dos sucessos do FCP, do Euro 2004 e dos Olímpicos, nos faltaria assunto. Não bastava o extraordinário progresso que fizemos desde a entrada dos novos estados membros da UE, passando de último em quinze para o décimo sétimo lugar em vinte e cinco, havendo mesmo quem se interrogue sobre quantos anos levaremos a ocupar outra vez esse patético primeiro lugar a contar do fim. E assim lá fomos mais uma vez distraídos das nossas preocupações. Ficámos a saber coisas fantásticas. A nossa Armada é capaz de nos defender de qualquer grupo de mulherzinhas de países estrangeiros que nos queiram invadir com propostas subversivas.
Temos Presidente da República. Quase ninguém dá por isso, mas é o próprio que amiúde nos lembra que é Comandante Supremo das Forças Armadas e Garante da Constituição. Pelos vistos é tão pouco evidente que é preciso lembrar os jornalistas e o povo. De qualquer modo podemos ficar tranquilos pois o Senhor Ministro da Defesa já deu o caso por encerrado. Infelizmente o barquito holandês, de dissimuladamente gigantesco calado, provocou ondas e lá começou outra vez o martírio de discutir o que já está discutido em toda a Europa. Só entre nós é que já vem sendo hábito regular. Não parecendo haver mais nada com que entreter o povo vamos lá ao assunto do costume. E aparecem as cabecitas empolgadas por argumentações extremadas, as quais, são por vezes tão opostas, tão afastadas que se assemelham pelo ridículo de uma clamorosa falta de bom senso. Desde as que gritam alto e bom som que a barriga é delas e fazem como lhes der na realíssima, até às que gritam que um espermatozóide a caminho de um ovo já é vida potencial e se chama criança, todas e todos num circo nada propiciador à serena reflexão que assuntos sérios merecem. Entretanto muitas mulheres sofrem e não serão estas fantochadas que nos levarão às soluções de compromisso e bom senso que deveriam caracterizar uma sociedade civilizada.
Parafraseando Wilde, não acabemos por fazer as coisas certas só depois de esgotarmos todas as outras possibilidades.

M. Rocha Carneiro
mdarcarneiro@yahoo.com.br

2 de Setembro de 2004

(publicado)

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